Se você, assim como eu, chegou até a obra de Hayao Miyazaki através do filme A Viagem de Chihiro, você vivenciou a emoção de ser transportado para um mundo de fantasia, desenhado em uma estética anime bem particular, durante duas horas e cinco minutos de aventuras ao lado da adorável Chihiro Ogino. Sabe essa emoção que você sentiu ao ver o filme? Pois é, a OpenAI, empresa responsável pela inteligência artificial generativa ChatGPT, acredita que pode empacotar e vender em forma de filtro de selfie ou gerador de meme. Mas, será que a aura do trabalho de Miyazaki cabe num algoritmo?
A recente popularização de imagens geradas por inteligência artificial (IA) no estilo do artista japonês Hayao Miyazaki e do Studio Ghibli, descrita no artigo “People Love Studio Ghibli. But Should They Be Able to Recreate It?” publicado pelo The New York Times, revela um fenômeno que Walter Benjamin antecipou em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936). Enquanto usuários celebram a capacidade de transformar selfies ou memes em “Ghiblificações” instantâneas, o pensamento benjaminiano nos convida a refletir sobre o esvaziamento da aura artística e as contradições que podem surgir desse tipo de prática.
Para Benjamin, a aura de uma obra de arte está ligada à sua existência única no tempo e no espaço, à sua autenticidade e ao esforço humano que a produziu. Nesse contexto, podemos dizer que as animações de Miyazaki, meticulosamente desenhadas à mão ao longo de anos, carregam elementos dessa aura: cada cena desenhada é testemunha de um processo criativo intencional, imerso em contexto cultural e emocional. Por outro lado, as imagens geradas por IA que simulam a estética do artista, como as geradas pelo novo modelo do ChatGPT, são fruto de algoritmos treinados em dados — reproduções técnicas que não nascem de uma experiência humana direta, e sim de padrões estatísticos.
Ao recriar o “estilo Ghibli”, a IA não homenageia Miyazaki; ela o reduz a um conjunto de traços replicáveis, desvinculados do significado original. Como observa Benjamin, a reprodutibilidade técnica transforma a arte em commodity, esvaziando-a de sua “presença ritual”.
A Ilusão da inspiração e a crise da autoria
O artigo publicado pelo The New York Times menciona críticas de artistas como Jonathan Lam, para quem o estilo é parte da identidade criativa. Benjamin já alertava que a reprodutibilidade desloca a ênfase da “função ritual” da arte para sua “função política”, tornando a arte acessível, mas também descartável. A partir dessa perspectiva, percebemos que a IA acentua essa dinâmica ao permitir que qualquer pessoa gere uma imagem que simula a arte de Miyazaki em segundos, o que dilui a noção de autoria e esvazia o processo criativo de sua dimensão subjetiva.
Nos reduzimos ao papel de uma máquina de reprodução — uma fotocopiadora digital que obedece a comandos e replica à exaustão variações do mesmo prompt, adaptadas apenas às exigências superficiais da era algorítmica. Os resultados não são réplicas perfeitas, é verdade, mas carregam em si a essência mecânica da cópia: um gesto repetido infinitamente, esvaziado de intenção, multiplicado no compartilhamento viral como um ritual vazio de criação.
Miyazaki, que em um vídeo de 2016 classificou a IA como “um insulto à vida”, compreende que arte não se trata apenas de uma questão estética, mas sim de expressão da humanidade. Suas críticas ecoam a ideia de Walter Benjamin de que a técnica, quando desvinculada da intencionalidade humana, aliena a obra de seu contexto vital. As imagens “ghiblificadas”, postadas por usuários nas redes sociais, que ilustraram tragédias como o World Trade Center no 11 de Setembro, o assassinato de George Floyd ou a prisão de imigrantes no Estados Unidos, exemplificam esse esvaziamento em que a dor e o sofrimento são estilizados, transformados em produto de consumo efêmero.
A OpenAI defende seu modelo como ferramenta de “liberdade criativa”, permitindo estilos de estúdios, mas não de artistas vivos. Essa distinção, porém, não resolve a contradição central de que a IA pode operar por meio de dados coletados sem consentimento. O texto do The New York Times deixa clara essa questão quando relembra do processo movido pelo próprio The New York Times em 2022 contra a OpenAI e a Microsoft por usarem, sem permissão, trabalho publicado pelo jornal no treinamento de seus modelos.
Walter Benjamin nos diria que, mesmo quando empresas como a OpenAI impõem certos limites (como bloquear a reprodução do estilo de artistas vivos), a essência da produção em massa acaba transformando a arte em um produto controlado por interesses tecnológicos. Nesse cenário, o que importa não é mais o significado ou a experiência humana por trás da obra, mas sim seu valor comercial — ou seja, a arte deixa de ser algo vivido para virar apenas mais um item no mercado.
Aura algorítmica não existe
As supostas homenagens a Miyazaki feitas a partir de uma reprodução da simulação do resultado dos seus processos criativos e do seu traço revelam uma ironia: buscam capturar a magia de suas obras, mas negam justamente o que as torna mágicas — a aura.
Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin revela para o leitor que a perda da aura não é um acidente, mas um sintoma da modernidade. Se por um lado a democratização da arte é louvável, por outro ela risca a fronteira entre criação e imitação, entre humanidade e máquina. Enquanto usuários se maravilham com funcionalidades de IA, é urgente perguntar: podemos celebrar a arte sem reduzir seus criadores a algoritmos?
A resposta, talvez, esteja em lembrar que a verdadeira homenagem a Miyazaki não está na replicação de seu estilo, mas na preservação da aura que só existe quando a arte é feita por — e para — humanos.
Se você não viu o filme e ainda não sentiu a emoção, deixo a indicação pra você assistir.

Referências:
KIRCHER, Madison Malone. People Love Studio Ghibli. But Should They Be Able to Recreate It? The New York Times, 27 mar. 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/03/27/style/ai-chatgpt-studio-ghibli.html. Acesso em: 29 de março de 2025.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 165-196.
0 comentário